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segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Uruguaiana - Uma invenção farroupilha (2007)



Pouca gente sabe, mas Uruguaiana foi fundada pelos farroupilhas
tendo por base a planta de Pelotas

Sentado a sombra de Domingos José de Almeida na incomum tarde quente e ensolarada de agosto, Solón Melo da Luz observa os carros que cortam apressados a avenida Getúlio Vargas em direção ao centro de Uruguaiana. Com fala mansa e pausada, o acabrunhado peão de 62 anos, crescido entre ovelhas e cavalos crioulos não titubeia ao ser questionado sobre quem é a figura esculpida em bronze que lhe protege do sol: "Domingos de Almeida...ele andava com os farrapos e fundou esta cidade."

A história que chegou até Solón é verdade e teve início no verão de 1843, quando o então todo poderoso ministro da Fazenda da República Rio-grandense, José Domingos de Almeida determinou a criação de uma povoação civil-militar na fronteira com a Argentina, mais precisamente no Capão do Tigre, as margens do rio Uruguai. "A República Rio-grandense precisava de um ponto comercial com a Argentina e o Uruguai e o rio possibilitaria isso", explica a historiadora Marilene Ribeiro, professora da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul em Uruguaiana (PUC-RS/Uruguaiana).

Pelas contas do advogado e pesquisador Luis Stábile, quando o presidente Bento Gonçalves da Silva assinou o decreto nº 21 em 24 de fevereiro daquele ano, já viviam por ali aproximadamente 200 pessoas espalhadas por um conjunto de ranchos na localidade conhecida por Santana Velha, as margens do arroio Quaraí.

Os primeiros habitantes da cidade criada pelos farrapos eram bugres, gaúchos argentinos e uruguaios que sobreviviam da compra e venda de gado, em um lugar que era tanto uma passagem obrigatória de tropeiros e como um incipiente entreposto comercial.

De olho comprido nos benefícios que poderiam ser colhidos a partir da dominação de um estratégico ponto comercial fronteiriço e diante da obrigação de controlar o contrabando de gado, que minava a combalida economia republicana, os líderes farroupilhas fixaram tropas naquele ponto extremo do pampa rio-grandense e demarcaram as áreas por onde, hoje, passam ruas como a arborizada Domingos de Almeida ou a larga Presidente Vargas, onde o melancólico Solón vê a tarde passar, enquanto espera pela carona que tarda a chegar.


PELOTAS E URUGUAIANA: IRMÃS "QUASE" GÊMEAS

Como traçar uma cidade a partir do nada não é tarefa fácil, Domingos de Almeida optou por seguir um modelo bem conhecido seu para "desenhar" a única cidade erguida pelos farrapos durante os nove anos de existência da República Rio-grandense: o de Pelotas.

A partir disso, Uruguaiana foi traçada com ruas retas, que a cortam de norte a sul e de leste a oeste e com orientação solar norte-sul. Como podia melhorar o que já conhecia, o ministro-"arquiteto" alargou as medidas das ruas e planejou a nova cidade com calçadas de seis metros de largura e ruas de, no mínimo, oito metros de uma calçada a outra. O resultado disso é que, hoje, apesar de seus 116,1 mil habitantes Uruguaiana é uma cidade espaçosa, onde o trânsito flui fácil e as calçadas nunca parecem cheias demais.

"Tivemos sorte de Domingos de Almeida ter desenhado a cidade", admite Tonico Fagundes, atual secretário municipal de Cultura e orgulhoso descendente do juiz de paz Teodolindo Fagundes, encarregado por Domingos de Almeida de escolher o local para a instalação da futura cidade de Uruguaiana.


"PAI" DESNATURADO

A tradição oral passada de geração para geração diz que embora tenha sugerido e planejado a criação de Uruguaiana, o ministro Domingos de Almeida jamais colocou os pés na cidade.

Na época em que a decisão foi tomada a capital da República Rio-grandense, estava baseada em Alegrete (distante 140 quilômetros) e, o futuro povoado estava incluído no 2º distrito da capital farrapa e foi da capital que partiu a ordem para o juiz Fagundes escolher o local onde seria erguido o povoado.

O fato do ministro não ter conhecido o lugar escolhido parece não ter diminuido seu otimismo com relação a decisão. "O local oferece uma excelente posição militar que para o futuro poderá fazer grande peso na balança política e comercial com nossos vizinhos", escreveu ao presidente e general Bento Gonçalves da Silva.

Antes do final daquele ano, no entanto, Domingos de Almeida se afasta do governo e da República em meio a uma violenta crise institucional incendiada por acusações de corrupção movidas pelo Ministro da Guerra, Antônio Vicente da Fontoura. A partir daí, Almeida se fixaria em Pelotas onde permanece até sua morte em em 6 de maio de 1871.

Não ter conhecido a "filha" que fez nascer na fronteira, não impediu, todavia, que Domingos de Almeida fosse homenageado pela comunidade de Uruguaiana, que atribuiu seu nome a uma rua, uma escola estadual e ergueu-lhe uma estátua na principal entrada da cidade.

Memórias de guerra

Criada a menos de dois anos do final da Revolução Farroupilha, Uruguaiana, guarda poucas lembranças da maior guerra civil travada em solo brasileiro. A história da cidade, no entanto, está intimamente ligada aquela que foi o mais violento conflito bélico da América do Sul: a Guerra do Paraguai (1864-1870).

Em 5 de agosto de 1865, a cidade foi invadida por um exército de 6,8 mil homens comandados pelo tenente-coronel Antônio de la Cruz Estigarribia. A ocupação paraguaia dura exatos 44 dias, até que na tarde do dia 18 de setembro, Estigarribia se rende na presença do Imperador do Brasil, D. Pedro II e dos presidente da Argentina, general Bartolomé Mitre e do Uruguai, general Venâncio Flores.

O episódio da Retomada de Uruguaiana que é celebrado até hoje, com pompa e circustância, curiosamente, sempre durante as celebrações da Semana Farroupilha encerrou a primeira fase da guerra e marcou o início da derrocada do Paraguai frente as tropas da Tríplice Aliança (Brasil, Uruguai e Argentina).

A "filha dos Farrapos" é adotada pelo Império

A localização estratégica escolhida por Domingos de Almeida para instalar a porta da República Rio-grandense para o comércio com os países do Prata, foi o salvo-conduto de Uruguaiana rumo ao desenvolvimento.

Ao contrário do que ocorreu em Piratini - a primeira capital farroupilha - o governo imperial brasileiro poupou a "filha" dos farrapos de retaliações após a assinatura do Tratado de Ponche Verde (25 de fevereiro de 1845), que pôs um ponto final na grande guerra do sul. Instalada às margens do rio Uruguai a localidade recebeu investimentos do Império que, ironicamente, transformou-lhe exatamente naquilo em que Domingos de Almeida havia sonhado: um importante entreposto comercial entre Brasil, Argentina e Uruguai.

Pouco mais de um ano após o fim da Revolução Farroupilha o povoado é elevado por decreto imperial à categoria de vila. A data, 29 de maio de 1846, é até hoje a utilizada para contar e celebrar os aniversários da cidade. "Em fevereiro, por causa das férias sempre há pouca gente na cidade, então optaram pelas comemorações em maio, quando é possível envolver toda a população", tenta justificar o pesquisador Luiz Stábile.

Raízes da tradição

Aos 12 anos, a sorridente Caroline Castro, enverga vaidosa a faixa de terceira prenda mirim do Centro de Tradições Gaúchas (CTG), Sinuelo do Pago, mas não esconde que seu maior orgulho são os 23 troféus obtidos em provas campeiras, que disputa desde os tenros três anos de idade. O apego de Caroline as lidas do campo e as provas que as reproduzem servem de testemunho da principal herança deixada pelos farrapos aos filhos de Uruguaiana: a paixão pela tradição gaúcha.

Os números da 4ª Região Tradicionalista (RT) mostram que existem, hoje, na cidade nada menos do que nove CTGs e 30 piquetes registrados, enquanto as contas dos patrões das principais entidades falam em 60% dos 116,1 mil moradores envolvidos diretamente com movimentos ou entidades de preservação da cultura nativa.

BERÇOS DE TRADIÇÃO

Em uma das mesas do Grêmio Tiradentes - antes da abertura do torneio semi-final de truco da Semana Farroupilha de 2007 - durante uma conversa franca alguns líderes tradicionalistas tentam explicar a paixão quase incondicional dos uruguaianenses pelo nativismo. "O culto as tradições gaúchas, por aqui, é anterior ao Paixão Côrtes", sentencia o contador Luis Ernesto Iglesias dos Santos, de 55 anos, presidente da comissão organizadora da Semana Farroupilha de 2007, em uma alusão ao folclorista João Carlos Paixão Côrtes, que a partir de 1947 deu início ao Movimento Tradicionalista Gaúcho (MTG). "Nossos antepassados guardaram estas fronteiras e isto ajudou a criar um amor por esta terra e tudo o que se refere a ela", acrescenta  Enar Rivero, 53 anos, Patrão do Sinuelo do Pago.

Chamado a opinar na conversa, o até então silencioso Edgar Mota Fagundes, de 69 anos, escolhido como o Gaúcho do Ano apruma-se e com a fala dura e grave característica dos fronteiriços dispara aquela que parece ser a sentença definitiva da discussão: "este culto herdamos do caráter dos farrapos, de sua capacidade de amar a terra, de seus ideais libertários, é isso que nos torna tão apegados as tradições do Rio Grande."

segunda-feira, 10 de setembro de 2012

Nasce uma república em pleno pampa



Na tela de Antonio Parreiras (1915), Neto aparece a cavalo, mas a proclamação foi feita de pé
no meio da tropa acampada nos campos de Selval, hoje, um distrito de Candiota


Uma baioneta, um cano de pistola e um espadim fazem parte do acervo particular que o pecuarista Heitor Ferreira, 47 anos, juntou ao escavocar os campos do interior do município de Candiota, na região da Campanha. O homem que hoje investe na criação do Núcleo de Pesquisa Histórica do Seival é também o principal detentor da memória do lugar, onde em 11 de setembro de 1836 nasceu um país: a República Rio-grandense.

Morador da vila que em 1936 incorporou o nome dado aos campos vizinhos pelo desbravadores espanhóis, que no século 16 encontraram por ali muitos pés de seibo - daí a expressão seibal, aportuguesada para seival - Ferreira é uma espécie de referência local quando o assunto é o enfrentamento das tropas de Antônio de Souza Neto e João da Silva Tavares, em 10 de setembro de 1836. Há anos, o pesquisador busca o local exato da peleia onde tombaram 26 farrapos e 167 imperiais e que precedeu a proclamação da independência do Rio Grande do Sul do resto do Brasil.

Encontrar o lugar significa descobrir os restos mortais de 185 combatentes daquele dia que foram sepultados no campo de combate. Grande parte deles eram filhos da casta mais alta da sociedade do município de Herval, que lutava ao lado de Silva Tavares. “Quarenta e três anos depois, na degola do rio Negro, comandada por Joca Tavares (filho de Silva Tavares) há um ajuste de contas deste combate, quando a maior parte dos degolados descendia diretamente dos vitoriosos em Seival”, defende o historiador Cláudio Moreira Bento.

Sorte Farrapa

Na manhã de 10 de setembro de 1836, Neto estava à frente de uma força de 430 homens quando encontrou-se com os 500 imperiais liderados por Silva Tavares em meio as coxilhas do Seival, próximo as margens do rio Jaguarão, nos campos que hoje ficam na margem direita da BR 293 no sentido Bagé-Pelotas.

Às 9h, as carabinas fizeram estremecer céu e terra em uma salva de tiros. Logo em seguida aos gritos Neto avisou: “Camaradas! Não quero ouvir um tiro mais. À carga, a espada, e lança!”. Em seguida a cavalhada farroupilha atirou-se ao galope em direção a cavalaria imperial que já corria pelo campo. O encontro das tropas deu origem a um carrossel de homens e cavalos, que girava ao som do choque de metal e dos gritos lancinantes dos feridos.

Em meio ao balé mortal, a sorte sorriu aos farrapos. “Tavares estava em vantagem e teria vencido, não fosse uma lança ter cortado os arreios de seu cavalo, que partiu em disparada fazendo seus homens pensarem que batia em retirada e se desorganizassem”, conta Ferreira. Quando Tavares retornou e a tropa se reorganizou, era tarde demais e não havia outra alternativa ao oficial do Império a não ser se retirar do combate. O dia, definitivamente era farroupilha.

“Independência, República, liberdade ou morte”

A retumbante vitória farroupilha serviu de pano de fundo para o evento que mudaria não apenas os rumos da revolução, mas também do jovem Império do Brasil: a proclamação da República Rio-grandense.

Antes da alvorada de 11 de setembro de 1836, depois de uma noite insone Neto postou-se no centro do quadrado formado por sua tropa para escutar a leitura da ordem de serviço escrita durante a longa noite anterior em conjunto com Joaquim Pedro Soares e Manuel Lucas de Oliveira, emissários de Domingos José de Almeida chegados a Seival pouco depois de encerrado combate.

O texto lido por Joaquim Pedro naquela madrugada, às margens do rio Jaguarão, fazia duras críticas ao governo imperial e declarava independente do Brasil a província do Rio Grande do Sul. “Em todos os ângulos da Província não soa outro eco que o de independência, república, liberdade ou morte!”, leu Joaquim Pedro na carta assinada por Neto. Terminada a leitura, a tropa irrompeu em sonoros vivas a recém-nascida república Rio-grandense.

Para os historiadores contemporâneos os ecos daquela histórica leitura perduraram além da derrocada da República Rio-grandense e foram sentidos por toda a nação 53 anos depois. “A república brasileira nasceu no Seival, não há dúvida disso, existem evidências concretas de que o marechal Deodoro da Fonseca sofreu influência direta dos ideais farroupilhas”, defende Cláudio Moreira Bento.

Seival é a salvação de Seival 

O resgate da história do combate do Seival e a localização correta dos eventos que ali ocorreram naquele final de inverno de 1836, são vistos com a principal e, talvez, única tábua de salvação do povoado que teve o nome eternizado nos livros sobre a história da Revolução Farroupilha.

Depois de experimentar um período de grande opulência e desenvolvimento a vila do Seival é hoje um lugarejo pobre e decadente, formado por ruínas de um tempo que hoje faz parte apenas da memória dos moradores mais antigos.

Fundado em 1844 então como o nome de Santa Rosa, a povoação estava no caminho da estrada de ferro, possuía uma filial do Banco Pelotense e era um próspero entreposto comercial e de produção de charque. A quebra do Banco Pelotense e a desativação da linha férrea na segunda metade do século 20 fizeram a localidade mergulhar no ostracismo.

Hoje, o turismo cultural baseado na exploração dos acontecimentos de 1836 surge como a principal esperança para fazer renascer a economia local. Mas para tornar isso possível é preciso, primeiro, encontrar os lugares corretos onde tudo se deu.

Atualmente, os dois monumentos instalados na década de 1980 com o objetivo de lembrar os episódios da Revolução Farroupilha estão muito distantes dos locais onde os fatos a que se referem aconteceram.

Por praticidade foram colocados às margens da rodovia que liga Bagé a Pelotas. O monumento que celebra a proclamação da República Rio-grandense, por exemplo, está aproximadamente oito quilômetros distante de onde Neto e suas tropas acamparam. Já o Arco do Triunfo - no local exato onde Joaquim Pedro fez a leitura histórica - erguido pela prefeitura de Bagé para marcar o centenário da proclamação desapareceu.

“Encontrar os sítios exatos possibilitará tanto a exploração arqueológica e histórica como a turística”, defende Heitor Ferreira, que revela estar perto de encontrar algumas respostas capazes de resgatar o passado e mudar o futuro do Seival.