Pouca gente sabe, mas Uruguaiana foi fundada pelos farroupilhas tendo por base a planta de Pelotas |
Sentado a sombra de Domingos José de Almeida na
incomum tarde quente e ensolarada de agosto, Solón Melo da Luz observa os
carros que cortam apressados a avenida Getúlio Vargas em direção ao centro de Uruguaiana.
Com fala mansa e pausada, o acabrunhado peão de 62 anos, crescido entre ovelhas
e cavalos crioulos não titubeia ao ser questionado sobre quem é a figura
esculpida em bronze que lhe protege do sol: "Domingos de Almeida...ele
andava com os farrapos e fundou esta cidade."
A história que chegou até Solón é verdade e
teve início no verão de 1843, quando o então todo poderoso ministro da Fazenda
da República Rio-grandense, José Domingos de Almeida determinou a criação de
uma povoação civil-militar na fronteira com a Argentina, mais precisamente no
Capão do Tigre, as margens do rio Uruguai. "A República Rio-grandense
precisava de um ponto comercial com a Argentina e o Uruguai e o rio
possibilitaria isso", explica a historiadora Marilene Ribeiro, professora
da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul em Uruguaiana
(PUC-RS/Uruguaiana).
Pelas contas do advogado e pesquisador Luis
Stábile, quando o presidente Bento Gonçalves da Silva assinou o decreto nº 21
em 24 de fevereiro daquele ano, já viviam por ali aproximadamente 200 pessoas
espalhadas por um conjunto de ranchos na localidade conhecida por Santana
Velha, as margens do arroio Quaraí.
Os primeiros habitantes da cidade criada pelos
farrapos eram bugres, gaúchos argentinos e uruguaios que sobreviviam da compra
e venda de gado, em um lugar que era tanto uma passagem obrigatória de
tropeiros e como um incipiente entreposto comercial.
De olho comprido nos benefícios que poderiam
ser colhidos a partir da dominação de um estratégico ponto comercial
fronteiriço e diante da obrigação de controlar o contrabando de gado, que
minava a combalida economia republicana, os líderes farroupilhas fixaram tropas
naquele ponto extremo do pampa rio-grandense e demarcaram as áreas por onde,
hoje, passam ruas como a arborizada Domingos de Almeida ou a larga Presidente
Vargas, onde o melancólico Solón vê a tarde passar, enquanto espera pela carona
que tarda a chegar.
PELOTAS E URUGUAIANA: IRMÃS
"QUASE" GÊMEAS
Como traçar uma cidade a partir do nada não é
tarefa fácil, Domingos de Almeida optou por seguir um modelo bem conhecido seu
para "desenhar" a única cidade erguida pelos farrapos durante os nove
anos de existência da República Rio-grandense: o de Pelotas.
A partir disso, Uruguaiana foi traçada com ruas
retas, que a cortam de norte a sul e de leste a oeste e com orientação solar
norte-sul. Como podia melhorar o que já conhecia, o
ministro-"arquiteto" alargou as medidas das ruas e planejou a nova
cidade com calçadas de seis metros de largura e ruas de, no mínimo, oito metros
de uma calçada a outra. O resultado disso é que, hoje, apesar de seus 116,1 mil
habitantes Uruguaiana é uma cidade espaçosa, onde o trânsito flui fácil e as
calçadas nunca parecem cheias demais.
"Tivemos sorte de Domingos de Almeida ter
desenhado a cidade", admite Tonico Fagundes, atual secretário municipal de
Cultura e orgulhoso descendente do juiz de paz Teodolindo Fagundes, encarregado
por Domingos de Almeida de escolher o local para a instalação da futura cidade
de Uruguaiana.
"PAI" DESNATURADO
A tradição oral passada de geração para geração
diz que embora tenha sugerido e planejado a criação de Uruguaiana, o ministro
Domingos de Almeida jamais colocou os pés na cidade.
Na época em que a decisão foi tomada a capital
da República Rio-grandense, estava baseada em Alegrete (distante 140
quilômetros) e, o futuro povoado estava incluído no 2º distrito da capital
farrapa e foi da capital que partiu a ordem para o juiz Fagundes escolher o
local onde seria erguido o povoado.
O fato do ministro não ter conhecido o lugar
escolhido parece não ter diminuido seu otimismo com relação a decisão. "O
local oferece uma excelente posição militar que para o futuro poderá fazer
grande peso na balança política e comercial com nossos vizinhos", escreveu
ao presidente e general Bento Gonçalves da Silva.
Antes do final daquele ano, no entanto,
Domingos de Almeida se afasta do governo e da República em meio a uma violenta
crise institucional incendiada por acusações de corrupção movidas pelo Ministro
da Guerra, Antônio Vicente da Fontoura. A partir daí, Almeida se fixaria em
Pelotas onde permanece até sua morte em em 6
de maio de 1871.
Não ter conhecido a "filha" que fez
nascer na fronteira, não impediu, todavia, que Domingos de Almeida fosse
homenageado pela comunidade de Uruguaiana, que atribuiu seu nome a uma rua, uma
escola estadual e ergueu-lhe uma estátua na principal entrada da cidade.
Memórias de guerra
Criada a menos de dois anos do final da
Revolução Farroupilha, Uruguaiana, guarda poucas lembranças da maior guerra
civil travada em solo brasileiro. A história da cidade, no entanto, está
intimamente ligada aquela que foi o mais violento conflito bélico da América do
Sul: a Guerra do Paraguai (1864-1870).
Em 5 de agosto de 1865, a cidade foi invadida
por um exército de 6,8 mil homens comandados pelo tenente-coronel Antônio de la
Cruz Estigarribia. A ocupação paraguaia dura exatos 44 dias, até que na tarde
do dia 18 de setembro, Estigarribia se rende na presença do Imperador do
Brasil, D. Pedro II e dos presidente da Argentina, general Bartolomé Mitre e do
Uruguai, general Venâncio Flores.
O episódio da Retomada de Uruguaiana que é
celebrado até hoje, com pompa e circustância, curiosamente, sempre durante as
celebrações da Semana Farroupilha encerrou a primeira fase da guerra e marcou o
início da derrocada do Paraguai frente as tropas da Tríplice Aliança (Brasil,
Uruguai e Argentina).
A "filha dos Farrapos" é
adotada pelo Império
A localização estratégica escolhida por
Domingos de Almeida para instalar a porta da República Rio-grandense para o
comércio com os países do Prata, foi o salvo-conduto de Uruguaiana rumo ao
desenvolvimento.
Ao contrário do que ocorreu em Piratini - a
primeira capital farroupilha - o governo imperial brasileiro poupou a
"filha" dos farrapos de retaliações após a assinatura do Tratado de
Ponche Verde (25 de fevereiro de 1845), que pôs um ponto final na grande guerra
do sul. Instalada às margens do rio Uruguai a localidade recebeu investimentos
do Império que, ironicamente, transformou-lhe exatamente naquilo em que
Domingos de Almeida havia sonhado: um importante entreposto comercial entre
Brasil, Argentina e Uruguai.
Pouco mais de um ano após o fim da Revolução
Farroupilha o povoado é elevado por decreto imperial à categoria de vila. A
data, 29 de maio de 1846, é até hoje a utilizada para contar e celebrar os aniversários
da cidade. "Em fevereiro, por causa das férias sempre há pouca gente na
cidade, então optaram pelas comemorações em maio, quando é possível envolver
toda a população", tenta justificar o pesquisador Luiz Stábile.
Raízes da tradição
Aos 12 anos, a sorridente Caroline Castro,
enverga vaidosa a faixa de terceira prenda mirim do Centro de Tradições Gaúchas
(CTG), Sinuelo do Pago, mas não esconde que seu maior orgulho são os 23 troféus
obtidos em provas campeiras, que disputa desde os tenros três anos de idade. O
apego de Caroline as lidas do campo e as provas que as reproduzem servem de
testemunho da principal herança deixada pelos farrapos aos filhos de
Uruguaiana: a paixão pela tradição gaúcha.
Os números da 4ª Região Tradicionalista (RT)
mostram que existem, hoje, na cidade nada menos do que nove CTGs e 30 piquetes
registrados, enquanto as contas dos patrões das principais entidades falam em
60% dos 116,1 mil moradores envolvidos diretamente com movimentos ou entidades
de preservação da cultura nativa.
BERÇOS DE TRADIÇÃO
Em uma das mesas do Grêmio Tiradentes - antes
da abertura do torneio semi-final de truco da Semana Farroupilha de 2007 -
durante uma conversa franca alguns líderes tradicionalistas tentam explicar a
paixão quase incondicional dos uruguaianenses pelo nativismo. "O culto as
tradições gaúchas, por aqui, é anterior ao Paixão Côrtes", sentencia o
contador Luis Ernesto Iglesias dos Santos, de 55 anos, presidente da comissão
organizadora da Semana Farroupilha de 2007, em uma alusão ao folclorista João
Carlos Paixão Côrtes, que a partir de 1947 deu início ao Movimento
Tradicionalista Gaúcho (MTG). "Nossos antepassados guardaram estas
fronteiras e isto ajudou a criar um amor por esta terra e tudo o que se refere
a ela", acrescenta Enar Rivero, 53
anos, Patrão do Sinuelo do Pago.
Chamado a opinar na conversa, o até então
silencioso Edgar Mota Fagundes, de 69 anos, escolhido como o Gaúcho do Ano
apruma-se e com a fala dura e grave característica dos fronteiriços dispara
aquela que parece ser a sentença definitiva da discussão: "este culto
herdamos do caráter dos farrapos, de sua capacidade de amar a terra, de seus
ideais libertários, é isso que nos torna tão apegados as tradições do Rio
Grande."