Pesquisar este blog

domingo, 31 de março de 2013

Relembrando 1964



Em março de 2004, tive o prazer de escrever para o Diário Popular uma série de três capítulos resgatando a história do Golpe Militar de 1964 a partir dos acontecimentos daqueles dias sombrios em Pelotas. Foram dezenas de entrevistas, com militares, jornalistas, ativistas políticos, historiadores e gente comum em busca de qualquer fragmento de lembrança que ajudasse a remontar o panorama dos dias que antecederam o Golpe e, principalmente, dos dias 31 de março e 1º de abril de 1964. 

As duas semanas de preparação da série de reportagens me possibilitaram conhecer personagens muito interessantes da cidade, hoje praticamente anônimos e desconhecidos, mas que naqueles dias viram, ouviram e fizeram parte da história brasileira. 

Hoje, aproveito o Casa da Pauta para resgatar parte daquele material, como forma de mostrar um pouco do que aconteceu na cidade naqueles dias. Devido ao volume estúpido de material não irei publicar tudo, me dou o direito de publicar apenas a última parte da série, que trata exatamente dos dias 31/3 e 1º/4 e de quebra uma entrevista com um dos personagens mais interessantes que encontrei naqueles dias: Euclides Serpa (já morto), ex-segurança particular do que o presidente Jango.

Espero que apreciem o material, pois produzi-lo foi uma experiência e tanto. 


Tanques contra a Constituição


31 de março de 1964, 3h30min. Pelotas ainda dorme. A 1.888 quilômetros das ruas calmas e silenciosas, o comandante da 4ª Região Militar, general Olímpio Mourão Filho ordena que dentro de duas horas e meia os três mil homens do Destacamento Tiradentes partam dali de Juiz de Fora (MG) em direção ao Rio de Janeiro. Pontualmente às 6h começa a operação militar que nas próximas 48 horas irá depor o Presidente João Goulart e mudar a história do Brasil.

O 31 de março amanhece frio e seco em Pelotas e no início da manhã os termômetros marcam 5,9ºC. É o dia mais frio do mês. O céu, contudo, está limpo e o sol aparece logo cedo. A edição do Diário Popular traz na manchete os reflexos da crise da Marinha: "Governo anula anistia dos marujos e fará investigação sobre incidentes".

Enquanto a terça-feira começa tranqüila no sul do Estado, em Minas Gerais as tropas do general Mourão dão início a Operação Silêncio (controle dos veículos e serviços de comunicação), a primeira das três etapas do plano para derrubar o Presidente da República. As outras duas são: a Gaiola (prisão dos principais líderes políticos e sindicais que pudessem provocar uma reação dentro de Minas Gerais) e a Popeye (deslocamento de tropas em direção ao Rio de Janeiro e Brasília).

REBELIÃO

Mourão Filho (de capacete) saiu "antes da hora"
Até a primeira hora da tarde a rotina de Pelotas permanece inalterada, mas conforme o Destacamento Tiradentes se aproxima da divisa de Minas Gerais com o Rio de Janeiro a tensão aumenta e surgem os primeiros indícios de que alguma coisa está fora do normal.

Antes do final da tarde as ruas da cidade estão tomadas por soldados do 9º Regimento de Infantaria (RI). "Ía chegando no jornal - perto das 18h - quando vi soldados em grupos, correndo de um lado para o outro e em seguida veio a recomendação para que todos fossem para casa porque poderia ocorrer alguma coisa desagradável. Pensei: 'Desagradável como? O dia está tão bonito'", lembra o jornalista Joaquim Salvador Pinho, de 68 anos, então secretário de redação do turno da noite no Diário Popular.

Pouco antes, às 17h, soldados mineiros haviam dominado a ponte do rio Paraibuna - na divisa de Minas com o Rio -, a partir disso o general Mourão Filho divulga a proclamação contra o Governo e anuncia que o Exército está rebelado.

O golpe pelas ondas do rádio

Castelo Branco aclamado presidente pelos generais
A noite de 31 de março caiu pesada e silenciosa sobre Pelotas. O toque de recolher esvaziou as ruas, fechou bares e restaurantes e faz a tensão dos dias anteriores ser substituída pelo medo e incerteza. Por trás das janelas fechadas por causa do frio, o ruído dos rádios denuncia a busca por informações.

"Eu tinha uma radiola RCA e foi através dela que fiquei sabendo da derrubada do presidente Jango", lembra o aposentado, Sued Macedo, de 70 anos. A notícia espalha preocupação no bairro Simões Lopes, então um reduto de operários e sindicalistas e deixa a noite mais longa.

Do outro lado da cidade, na avenida República do Líbano, o protético Ercide Bezerra dos Santos, de 67 anos, também não sai de perto do rádio. Simpatizante das Reformas de Base acompanha com ansiedade as notícias. "Não esperava que a coisa fosse tão rápida, achava que poderia acontecer a mesma coisa que em 61", conta. Quando o sono chega, a madrugada de 1º de abril já está próxima e em São Paulo o governador Ademar de Barros anuncia que está ao lado dos rebeldes. Logo depois o comandante do 2º Exército, general Amauri Kruel divulga nota oficial de adesão ao movimento.

O presidente João Goulart, que está no Rio de Janeiro, prepara sua volta a Brasília, sem saber que vive suas últimas 48 horas no país que governou por dois anos.


Plantão na Câmara

Tão logo a notícia do início do movimento para a deposição do presidente João Goulart chega em Pelotas, a Câmara de Vereadores decretou aberta uma sessão permanente. Em pouco tempo todos os 19 vereadores, assessores e funcionários do Legislativo montam prontidão no prédio da Biblioteca Pública Pelotense (BPP) onde, então, funciona a Câmara.

No segundo dia da vígila soldados do Exército vão até o prédio com a ordem de levar preso o vereador Edgar Curvello da Ação Revolucionária Socialista (ARS). "Houve tensão na Casa e preocupação entre os que estavam lá, mas depois de algum tempo o próprio Curvello se entregou de livre e espontânea vontade", lembra o então diretor da Câmara, Airton dos Santos.

A vígilia dos vereadores dura até o final daquela semana e nesse período ainda serão presos Vicente Real (ARS) e Getúlio Dias (PTB), que se apresentou ao Exército dias depois.

O jornal do dia seguinte

Enquanto os militares marcham em direção a Brasília, na redação do Diário Popular repórteres e redatores se lançam numa busca frenética por informações. Os vários rádios sintonizados em diferentes emissoras concedem um clima de confusão completa na pequena e abafada sala.

"Tentávamos de todos os modos captar alguma coisa a mais do que recebíamos e a cada nova informação juntávamos as peças como num quebra-cabeças para conseguir montar as notícias", lembra o jornalista Joaquim Salvador Pinho. O trabalho entra a madrugada até a edição possa ser dada como "fechada".

No dia seguinte o Jornal estampa a manchete: "Minas rebela-se contra Jango".



O dia 1º


O dia 1º de abril começa claro, frio e confuso em Pelotas. A notícia de que o Governo está sendo deposto é pública, mas ainda não se conhece seu desfecho. Da esquina do Café Aquário aos diferentes cantões da cidade o clima é de tensão e certa agitação.

Partidários do Presidente tentam esboçar alguma reação, mas são vencidos pela desorganização e pela presença das tropas nas ruas. No Simões Lopes, onde há mais de um ano haviam sido montados os chamados "Grupos de 11" - milícias formadas por 11 homens cada e que deveriam montar a resistência a tentativas de derrubada do Governo - a tentativa de invasão do quartel do 9º Regimento de Infantaria (RI) é abortada antes de começar. "Tínhamos ordens de procurar pelos chefes que nos levariam até determinado local onde reberíamos as armas para a luta, mas naquela manhã esperamos até cansar e nem os chefes, nem as armas apareceram", conta Sued Macedo.

Enquanto Macedo e seus companheiros esperam as armas que não chegarão, o então estudante de Agronomia, Manoel Luis Coelho corre junto com colegas do movimento estudantil para dar um destino na biblioteca (basicamente de literatura política) da representação da União Nacional dos Estudantes (UNE) na cidade. "Espalhamos os livros por várias casas na cidade, pois temíamos o que poderia acontecer se fossem encontrados".

No Centro, a movimentação também era grande. "Naquela manhã fui tomar um café no Café Aquário e não dava para parar porque a turma a favor do golpe comemorava ali", lembra Ercide Bezerra dos Santos. No início da tarde, dois manifestantes contrários simpáticos ao governo Jango tomam de assalto o estúdio da rádio Tupanci e fazem um manifesto contra o movimento militar. Com a chegada de soldados do Exército a dupla foge. Alguns piquetes percorrem os canteiros de obras na tentativa de sublevar os operários, mas também acabam intimidados com a presença dos soldados.

EM BRASÍLIA

Quase no mesmo horário, o presidente João Goulart voava em direção a Porto Alegre. Poucas horas depois o general rebelde Souza Aguiar recebia o comando do Exército em Brasília no lugar do então comandante do Distrito Federal, general Nicolau Fico.

Quando a noite cai sobre Pelotas, o presidente Jango ainda está em Porto Alegre. Mesmo assim, em Brasília, o presidente da Câmara dos Deputados, Pascoal Ranieri Mazzilli assume a Presidência da República, uma vez que o cargo havia sido declaro vago. No dia seguinte, Jango parte para exílio do qual só voltará em 1976 para ser sepultado em São Borja.


ENTREVISTA - EUCLIDES SERPA -O HOMEM DO PRESIDENTE


Em 1964, o empresário Euclides Serpa, hoje com 60 anos, era segurança pessoal do presidente da República, João Goulart. Naquele ano o filho de comerciantes de São Lourenço do Sul viu estourar ao seu lado a maior crise política brasileira do século 20. Durante 14 anos viveu exilado e, neste período, pode conhecer detalhes a vida da principal personagem dos acontecimentos daquele ano: Jango.



Diário Popular - Como o senhor foi trabalhar na segurança do Presidente Jango?
Euclides Serpa - Quando o doutor João Goulart assumiu o pessoal que iria atendê-lo foi escolhido a dedo entre o círculo de amigos íntimos dele. Meu pai (Euclides Serpa, o Duducha) era muito amigo dele e do Getúlio Vargas. Era o proprietário do Café Avenida, que ficava ao lado do Colégio Militar, em Porto Alegre, onde todos estudaram. Então acabei indo trabalhar com ele. Ao todo éramos cinco.

DP - O que o senhor lembra sobre a deposição do presidente?
ES - Eu estava no Rio de Janeiro - com o doutor Lino Brauner, presidente da Caixa Econômica Federal - quando os 'milicos' deram o golpe. Dali fui direto para Porto Alegre onde encontrei o Presidente no aeroporto. Me lembro que o Brizola gritava: "“me nomeie ministro da Justiça e o General Landell ministro da guerra que nós vamos resistir". Mas ele não tinha força, nem gente para resistir. Então partimos direto para São Borja e depois para a fazenda Sinamomo, em Itaqui na divisa com o Uruguai e, dali, fomos embora do Brasil.

DP - Como estava o ânimo do ex-Presidente durante a fuga?
ES - Ele estava muito calmo. Mas depois sofreu muito. No Uruguai ele sofria por estar fora do país dele, longe das fazendas dele, isso sem falar no que fizeram com ele dizendo que era comunista. Imagina! Um latifundiário como ele, comunista.  Por isso não simpatizava com ninguém que era militar na época.

DP - Como era Jango no dia-a-dia do exílio?
ES - Era um pai para nós, o cara mais bom do mundo, nos ensinou a cuidar do gado, a ganhar dinheiro sempre com qualquer tipo de negócio. Era um grande administrador. Nunca nos tratou de peão. Ele dizia: "O Serpa é meu colaborador", quamndo apresentava para as pessoas e completava: "ele deixou a família dele no Brasil para me acompanhar". Era o único cara que pedia cem levava 200, pedia 200 levava 400. Volta e meia ele mesmo fazia comida para a gente e não só na fazenda, mas na casa que ele morava também. Lá fora, aparecia na porta e dizia "mata aquela galinha que hoje eu vou cozinhar para a gente". Deopis tirava o sapato e cozinhava só de carpim, na cozinha. E cozinhava bem.

DP - Jango acreditava que voltaria ao Brasil?
ES - Uma vez a gente estava em Passo de Los Libres e perguntei para ele: "Doutor qual é o dia que nós vamos passar por esta ponte". Ele me respondeu: "Nós vamos passar, muito antes do que pensamos, mas seremos os últimos". Ele não tolerava que alguém estivesse exilado por causa dele. Ele acreditava que voltaria ao Brasil e seria candidato com o JK de vice. Já tava tudo acertado. Tavam tratando da volta dele.

DP - E a morte do ex-presidente como foi?
EU - Ele morreu em 1976, na Fazenda La Villa Mercedes, em Mercedes, na Argentina. Eu estava em Buenos Aires e na terça-feira íamos no encontrar, pois partiríamos para o Paraguai, porque os 'milicos' tinham tomado a Argentina e ele não ficaria mais lá. Passei o final de semana em Buenos Aires e na segunda-feira, bem cedo, fui até o sítio Quinta da Protetora me despedir do pessoal, porque não sabia quando voltaria a vê-los. Quando eu cheguei lá tinha um senhor alto ouvindo um rádio que ao me ver na porteira gritou: "Don Serpa! Don Serpa! Perdemos o patrão!". Eu não entendi na hora, depois me dei conta, estava dando a notícia da morte dele. Nem sei o que eu senti, devo ter chorado um mês. Foi muito triste. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário